Marcel, Ben-Hur e Nicole relatam experiências em tempos de pandemia
O ex-ala da seleção, Marcel de Souza, ídolo do basquete brasileiro. Nicole Silveira, atleta de skeleton (modalidade olímpica de inverno). E Ben-Hur Sturaro, ciclista de estrada. Os esportes podem ser diferentes, mas os três têm algo em comum, nesses tempos difíceis de pandemia do novo coronavirus (covid-19). Cada qual com sua atual profissão está comprometido na luta contra a doença. Marcel é médico. Ben-Hur, bombeiro. Nicole, enfermeira. Eles contaram suas trajetórias como atletas e como vêm enfrentando o dia a dia no trabalho.
Doutor Marcel
O basquete já era realidade para Marcel, que atuava por uma universidade nos Estados Unidos, quando – segundo ele – foi “escolhido” pela Medicina. “Acabei jogando só um ano, voltei, fiz cursinho e entrei [na faculdade]. Realmente, ficou uma coisa complicada treinar como eu treinava e estudar como estudava”, recorda.
“Passei a estudar muito mais, nas madrugadas, e tive que abandonar o treino adequado para o basquete. Quando se escolhe duas coisas juntas, uma tem que ser sacrificada. Foi o esporte. Não cheguei ao máximo que poderia”, completa o ex-atleta, que representou o país em quatro Olimpíadas e foi medalhista de bronze no Mundial de 1978 e de ouro nos Jogos Pan-Americanos de 1987.
Aposentado das quadras desde 1994, o ex-ala trabalha como ultrassonografista em uma clínica particular em Jundiaí (SP). Aos 63 anos e por trabalhar em sala fechada, com ar-condicionado, está no grupo de risco do novo coronavírus. “Eu faço mais ultrassom em pessoas que não estão com a covid-19, porque continua tendo grávidas, pessoas com dor abdominal, tireoide com nódulo… É tudo isso, mais a covid-19. E essas pessoas também precisam de atendimento”, explica. “No começo, caiu muito o número de atendimentos, mas agora é metade do que eu fazia antes. Atendo de máscara, luva, avental, tudo descartável. Pareço mais um astronauta do que outra coisa”, brinca.
Fora da clínica, porém, Marcel não deixa o papel de médico de lado. No início da pandemia, ele se ofereceu para tirar dúvidas sobre o novo coronavírus nas redes sociais. “Muita gente tinha medo de ir ao hospital e perguntava se era o caso de ir. Também [perguntam] sobre doses de medicação que estavam tomando, porque, no meio disso, há hipertensos, diabéticos que estão no grupo de risco. Acho que ao hospital só encaminhei uma pessoa, que já estava até com medicação antiviral”, conta.
O ex-jogador lembra que, no começo, as dúvidas não se limitavam ao público em geral. “O que acabou acontecendo é que as pessoas que morreram primeiro foram os médicos, por não saber tratar, porque não era uma coisa conhecida. Que tipo de pandemia era essa? Quais as características? São coisas que, hoje, a gente tem mais ou menos uma ideia e, então, diminuiu um pouco aquele receio, mas, quem trabalha na área médica está arriscado a isso mesmo”, admite Marcel.
Em meio à pandemia, o ex-craque do basquete destaca a importância de personalidades do esporte e de outros segmentos se manifestarem e cumprirem o isolamento. “Estou gostando de ver os atletas, que são modelos. Vejo também os artistas realizando shows em casa para a turma assistir. Essas pessoas que têm poder de influência estão engajadas, agindo de acordo”, elogia, considerando acertado o adiamento da Olimpíada de Tóquio (Japão) para 2021. “Era isso ou morrer. Tivemos vários exemplos. Espanha e Itália estão nessa crise porque não fecharam na hora que tinha que fechar. Fizeram um jogo de Liga dos Campeões com 50 mil pessoas, torcedores de ambos os países. Quinze dias depois, estourou a pandemia”, conclui.
Soldado Sturaro
O ciclista Ben-Hur compete internacionalmente há quatro anos. Ele, inclusive, estava com viagem programada desde dezembro para treinos e provas nos Estados Unidos, entre elas, a USA Crits, um dos maiores eventos do circuito amador e profissional no país. O embarque seria no próximo dia 9 de maio. “Seria”, já que a pandemia do novo coronavírus cancelou as competições. O atleta, então, dá lugar ao Soldado Sturaro, do Corpo de Bombeiros do Estado de São Paulo.
“Meu pai se aposentou como policial militar, então, eu sempre tive convívio com órgãos de segurança. Na adolescência, já pensava em ingressar na corporação”, recorda Ben-Hur, que vive a rotina como bombeiro há quase dez anos. Foi justamente a profissão que o levou ao ciclismo. “Foi para ter condicionamento. Comecei a pedalar para manter tudo em dia, fui me aperfeiçoando e decidi começar a competir. Adequei [as competições] ao trabalho, que vem primeiro. Foram surgindo eventos nacionais, depois internacionais”, conta o atleta, de 30 anos, e que vive e trabalha em Araçatuba (SP).
A rotina de esportista não foi a única impactada com a pandemia. “No atendimento a vítimas, os efetivos estão tomando as maiores precauções com os EPIs [equipamentos de proteção individual], como luvas de procedimento, óculos, avental impermeável e máscara. Todos os equipamentos utilizados no atendimento pré-hospitalar, na viatura, têm de ser higienizados em caso de vítimas contaminadas pela covid-19. Na chegada ao quartel, é feita esterilização com álcool 70 ou a troca do material e a viatura tem de ser totalmente esterilizada, além de aguardar duas horas para um novo atendimento, caso ela seja necessária”, explica.
Com a experiência de quem está na linha de frente do combate ao novo coronavírus, Ben-Hur destaca a importância de levar a sério o isolamento social. “Quando não há aglomeração, evita-se a proliferação do vírus. [O isolamento] Tem de ser respeitado, ainda mais agora que estamos no pico [da doença] em diversas localidades. Isso vai passar se todos ajudarem um pouquinho e forem conscientes. Independente de qualquer condição, o Corpo de Bombeiros estará pronto para agir e atender qualquer ocorrência. Eu me orgulho muito da minha profissão. Gosto de saber que posso ajudar alguém”, completa.
Enquanto isso, ciclismo competitivo só em 2021. O que não significa que a preparação esteja parada. “Eu tenho um rolo de corrida e faço simulações em casa. Tenho feito também fortalecimento com peso. No fundo da minha, residência tem um aparelho de ginástica, então, fui me adaptando para não perder a preparação. E no quartel, dia sim, dia não, tem alguns aparelhos também e a gente tem feito os exercícios ao ar livre. Não é igual, mas está dando para se manter fisicamente”, encerra.
Enfermeira Nicole
O skeleton é um esporte no qual o atleta desce uma pista de gelo deitado de bruços sobre um trenó. Em fevereiro, pouco mais de dois anos após iniciar na modalidade, Nicole se tornou a primeira brasileira a competir no Mundial, em Altenberg (Alemanha). Um mês antes, ela se sagrou vice-campeã da Copa América. Já em dezembro, foi eleita a melhor atleta de inverno no Prêmio Brasil Olímpico. “Antes do Mundial, passei seis semanas na Europa treinando, sendo quatro ou cinco sozinha – o que, em si, foi um aprendizado muito grande. Foram meses produtivos, onde me desenvolvi física e mentalmente. O esforço me trouxe resultados”, afirma a gaúcha de Rio Grande.
A brasileira de 25 anos mora com os pais em Calgary (Canadá). Até sexta-feira (22), o país teve 83.568 casos confirmados e 6.333 mortes por conta da covid-19 – bem menos que o vizinho Estados Unidos, com mais de um milhão e quinhentos mil de registros da doença e quase 96 mil óbitos. “Aqui, o pessoal pode sair para caminhar, mas, respeitando dois metros de distância. Os restaurantes estão abertos só para entregas. Nos mercados, colocaram adesivos no chão para indicar a distância e apenas certo número de pessoas pode entrar por vez. Por enquanto, está um pouco mais liberado que na Itália, onde nem se podia sair de casa, pois acreditam que os cidadãos daqui conseguem seguir as regras sem a necessidade de multá-los”, descreve a atleta.
Por “sorte”, a temporada de inverno já estava no fim quando a pandemia eclodiu. Não significa que Nicole esteja de férias. Além de realizar exercícios em casa, a gaúcha trabalha como enfermeira em dois hospitais, um infantil e um para adultos, no setor cardiológico. Curiosamente, segundo ela, o movimento é menor que o usual. “Trabalho em uma área pós-cirúrgica e cancelaram as cirurgias que não são de emergência. Todo mundo acha que os hospitais estão lotados, mas, acho que nunca estiveram tão vazios”, relata a atleta – que passou a atuar também no acesso de pessoas às unidades. “A gente afere a temperatura, pergunta se elas viajaram, se têm sintomas”, resume.
Apesar da relativa tranquilidade, precaução nunca é demais. “Todo dia, recebo informações diferentes de quais proteções devemos utilizar com pacientes que estão com o vírus. Quando [uma pessoa] está no hospital, tem de usar máscara o tempo todo. É incômodo quando se trabalha por 12 horas, mas é o que tem que ser feito”, conta Nicole, que também não economiza nos cuidados em casa. “Quando saio do hospital, troco de roupa e jogo a que utilizei em uma sacola de pano. Chegando em casa, jogo a sacola na lavanderia e vou para o banho. Também lavo a roupa que utilizei na saída do hospital e higienizo bastante a mão, que está até seca e rachando de tanto lavar”, brinca.
A princípio, segundo a gaúcha, a próxima temporada de inverno – prevista para iniciar em outubro – não teve modificações por conta da pandemia. Enquanto a volta às pistas de gelo não ocorre, a profissão que escolheu para além do esporte pede passagem. “Sou muito grata pelo emprego que tenho e por saber que, de alguma forma, estou ajudando a quem precisa. Espero que tudo volte ao normal logo”, finaliza Nicole, que espera ser a primeira atleta a representar o Brasil no skeleton em uma Olimpíada de Inverno em 2022, em Pequim (China).
Agência Brasil